20 kg de maconha nas costas de uma criança
A.N.C., 17 anos (Alexis Prappas/VEJA)
“Aos 14 anos, me apaixonei por um rapaz de 25 anos. Ele é traficante. Até então minha vida era normal. Estudava, morava com meus pais e minha irmã mais velha. Meu pai é pintor e minha mãe não trabalha.
Mesmo assim, nunca me faltou nada, nadinha mesmo. Com esse rapaz, vi maconha pela primeira vez. Comecei a fumar. Com o tempo me viciei. Fumei maconha todo dia, toda hora, durante um ano todo.
Um dia, para agradá-lo, me ofereci para trazer droga do Paraguai. Queria que ele visse que eu era capaz de fazer o que ele fazia. Viajei sozinha de Mato Grosso até Coronel Sapucaia, em Mato Grosso do Sul. Fui pega na volta, em um posto rodoviário, com 25 quilos de maconha em uma mala cor-de-rosa. Fiquei uma semana na delegacia.
O juiz me liberou. Meu pai foi me buscar. Nem ele ou minha mãe me bateram ou brigaram comigo. Eles conversaram, deram conselhos e até alguns presentes para me agradar. Não adiantou. Dois anos depois voltei a fazer a mesma coisa.
Dessa vez fui apreendida com 19,9 quilos de maconha na rodoviária de Dourados. Voltava de Ponta Porã para Cuiabá. A droga estava em duas bolsas. Só fui pega porque perdi um ônibus e fiquei muito tempo na rodoviária.
Isso atraiu a polícia. Para não chamar atenção, deixei ao meu lado uma sacola com dez quilos de maconha com o zíper aberto. Quem poderia desconfiar? Não deu certo. Caí. Dessa vez o juiz me mandou para a internação.
Faz seis meses que estou confinada na Unei (Unidade Educacional de Internação) de Dourados.
Acredito que saio no mês que vem. Meu aniversário de 17 anos foi aqui. Minha vida mudou, não consigo mais sonhar, não vejo mais futuro nenhum para mim. Queria ser psicóloga. Me decepcionei comigo mesma. Não sei por onde recomeçar.
”O depoimento acima é da adolescente A.N.C. Ela faz parte de uma realidade cada dia mais comum em Mato Grosso do Sul, a apreensão de menores de 18 anos transportando drogas pelas rodovias. São as novas mulas do tráfico internacional. Atualmente, dos 261 adolescentes que cumprem medida socioeducativa no Estado, 72 são por tráfico, de acordo com dados da Secretaria de Estado de Justiça e Segurança Pública de MS.
À parte a pobreza das crianças, não existe um padrão no perfil do adolescente infrator que faz o papel de mula da maconha do Paraguai para diversos estados brasileiros. A.N.C tem apenas 1,55m, é pequenininha, delicada. Como imaginar que uma menina de 14 anos teria condições físicas para carregar, de uma só vez, sozinha, 25 quilos de maconha? É o equivalente a cinco sacos de arroz de cinco quilos cada.
Para transportar 20 quilos de maconha, os adolescentes ganham, em média, 2500 reais. Parte desse dinheiro é gasto em passagens, alimentação e hospedagens. No final, sobram entre 1.000 e 2000 reais por um serviço de altíssimo risco.
J.L.L.S., 17 anos (Alexis Prappas/VEJA)
J.L.L.S, 17 anos, saiu de Sergipe para Ponta Porã – 295 quilômetros ao Sul de Campo Grande – sem ao menos se preocupar em olhar no mapa a distância que teria que percorrer, cerca de três mil quilômetros entre o litoral do Nordeste e a fronteira com o Paraguai.
O périplo teve início em um avião, em Aracaju. De lá ela voou para Brasília, onde fez conexão para Campo Grande, capital de Mato Grosso do Sul. Do aeroporto foi para a rodoviária onde embarcou em um ônibus para a fronteira. Grávida de três meses e duas semanas, ela precisou se hospedar por uma semana na cidade à espera do melhor momento para viajar.
Teve ordem do traficante para não sair do quarto e não conversar com absolutamente ninguém. Assistia televisão o tempo todo e uma vez ao dia ficava no corredor na hora da limpeza do apartamento. Recebia de uma mulher duas quentinhas por dia, um marmitex frio com o almoço e a janta.
Garçonete em Sergipe, a adolescente levaria a droga de ônibus de Ponta Porã até Salvador (BA), passando por Belo Horizonte (MG). O dinheiro serviria para pagar aluguel atrasado e as prestações também em atraso da motocicleta do namorado, mototaxista. Foi apreendida com 15 quilos de maconha na região de fronteira, em um posto rodoviário sul-mato-grossense.
“Não pode ser um cavalo-doido, pegar a droga e sair correndo feito um maluco pelas estradas. A gente espera o melhor dia, a melhor hora, para viajar. Tem que estar tranquilo, sem fiscalização”, explica J.L.L.S.
Cavalo-doido, na gíria do tráfico, é como chamam o motorista que pega droga na fronteira e viaja em alta velocidade pelo Brasil fugindo da polícia.
Além de mula e cavalo-doido, os adolescentes do tráfico também trabalham como batedores, dirigindo sozinhos carros pelas rodovias. Indo à frente, eles avisam por rádio ou celular se a estrada está liberada ou se existem barreiras policiais ou ficais fazendários em operação.
Não é incomum a polícia apreender menores dirigindo sozinhos pelas rodovias sul-mato-grossenses. Há ainda o mateiro. Esses são deixados ao longo das estradas, geralmente vicinais, para alertar se algum carro da polícia está na área.
As crianças do tráfico viajam com documentos falsificados e, muitas vezes, sem identidade nenhuma. Geralmente, apenas com a certidão de nascimento com a idade adulterada para 17 anos.
A legislação brasileira permite que maiores de 12 anos viagem desacompanhados desde que apresentem um documento original com fotografia, o que não é o caso da certidão de nascimento. A falta de fiscalização começa na rodoviária de origem onde as crianças embarcam.
A idade média das novas mulas vai de 14 a 16 anos. Há casos, no entanto, de adolescentes transportando drogas com apenas 12 anos. Muitas meninas atravessam o Brasil viajando de carona em caminhões.
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