Condenado por corte internacional, Brasil terá de reabrir investigação e indenizar vítimas de chacinas.

A Corte Interamericana de Direitos Humanos da OEA (Organização dos Estados Americanos) condenou o Estado brasileiro pela falta de investigação e de punição dos responsáveis por 26 mortes em operações policiais nos episódios conhecidos como chacinas de Nova Brasília, ocorridas em 1994 e 1995 no Rio de Janeiro. Até hoje, ninguém foi preso, julgado nem condenado pelas mortes. Foi a primeira vez em que o Brasil foi julgado e responsabilizado na Corte por um caso de violência policial.
Cosme Genoveva é uma das vítimas em processo que levou o Brasil ao banco dos réus na Corte Interamericana de Direitos HumanosCosme Genoveva é uma das vítimas em processo que levou o Brasil ao banco dos réus na Corte Interamericana de Direitos Humanos
Na sentença, concluída no dia 16 de fevereiro na Costa Rica e divulgada apenas na tarde da última sexta-feira, a Corte determina que o Brasil acelere e conduza de modo eficaz o processo da primeira chacina e reabra as investigações da segunda. Em cada chacina, 13 pessoas foram mortas.
Durante a operação policial realizada em 1994, três jovens, duas menores de idade à época, com 15 e 16 anos, teriam sido estupradas por policiais. De acordo com a decisão da Corte, a violência sexual, jamais apurada nem punida, também terá de ser investigada.
As medidas de reparação incluem a realização de um ato de reconhecimento, com a instalação de uma placa com os nomes das vítimas na praça da favela Nova Brasília, e o pagamento de indenização compensatória, no prazo de um ano, a parentes das vítimas de assassinato e às vítimas de violência sexual.
No entendimento da Corte Interamericana, houve demora injustificada nas investigações, e as famílias das vítimas ficaram sem proteção. Isso viola o direito às garantias judiciais de diligências em prazos razoáveis, como prevê a Convenção Interamericana de Direitos Humanos, da qual o Brasil é signatário. A Corte aponta ainda que o Estado brasileiro aceitou uma "inversão de papéis": os inquéritos, ao invés de apurar as mortes, se detêm no perfil dos mortos, apontados como possíveis criminosos, e eles é que aparecem como investigados.

Memória: corpos no lixo e nenhuma punição

A primeira chacina, em outubro de 1994, resultou de uma operação comandada pela Polícia Civil em busca de carros roubados, armas e drogas. Dias antes, traficantes do complexo do Alemão haviam metralhado a delegacia da região, a 21ª DP. A polícia informou que as mortes resultaram de confronto e registrou-as como "auto de resistência". Pelo menos dez das vítimas foram mortas com tiros na cabeça. Uma comissão independente montada pelo governo do Rio à época apontou sinais de execução sumária.
Em maio de 1995, a Polícia Civil comandou nova operação na Nova Brasília e, de novo, a versão oficial foi de que as mortes ocorreram num tiroteio entre policiais e traficantes. Os corpos foram retirados da favela no carro que levava o lixo, antes da realização da perícia.

Os dois inquéritos foram enviados ao Ministério Público e arquivados. ONGs como o Cejil (Centro pela Justiça e o Direito Internacional), Human Rights Watch e Iser (Instituto de Estudos da Religião) levaram os casos à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA. Por recomendação da Comissão Interamericana, o Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro (MPRJ) desarquivou em 2012 o inquérito sobre os crimes de 1995 e, em 2013, o da chacina de 1994. Em maio de 2013, o MPRJ denunciou quatro policiais civis e dois militares pelos 13 homicídios de 1994, sendo que mais de 120 participaram da operação na favela.
26 pessoas morreram nas chacinas de Nova Brasília
Em 7 de maio de 2015, o Ministério Público optou por arquivar novamente o inquérito sobre a segunda chacina. Entendeu que as mortes decorreram de tiroteio e reconheceu que algumas vítimas tinham sinais de execução, mas concluiu que não era possível identificar de onde haviam partido os disparos.

Punição e prevenção da violência sexual

A decisão da Corte é significativa por ser a primeira responsabilização do Brasil num caso de violência policial. Também é relevante o destaque dado ao estupro das três jovens moradoras de Nova Brasília. A Corte não só reconhece que houve violência sexual por parte de agentes do Estado - o que caracterizaria uma forma de tortura - como cobra a investigação, jamais realizada.
"Cumpre salientar, em especial, que a reabertura do inquérito realizada em 2013 não considerou o crime de estupro contra L.R.J., C.S.S. e J.F.C., e examinou unicamente os 13 homicídios. Nesse sentido, apesar de descrever os depoimentos das três vítimas de estupro e detalhar sua colaboração com as investigações realizadas na década de 1990, bem como as evidências dos delitos e a identificação de seus autores, a reabertura do inquérito não considerou os estupros como possíveis casos de tortura e não se iniciou um processo penal a respeito", afirma a sentença da Corte.
Ao contextualizar a violência urbana no Brasil, a Corte aponta a situação de vulnerabilidade de jovens, negros e pobres, mas também de mulheres: "As mulheres residentes em comunidades onde há 'confrontos' geralmente deparam uma violência particular, e são ameaçadas, atacadas, feridas, insultadas e, inclusive, objeto de violência sexual em mãos da polícia".
A Corte defende que haja o que chama de "perspectiva de gênero" nas investigações de violência sexual, com a presença de funcionários públicos capacitados e apoio psicológico às vítimas, além de garantias de segurança necessárias.

Fim da expressão "autos de resistência"

A praxe é que os países-membros da OEA cumpram as sentenças da Corte Interamericana, que costuma acompanhar a implementação das medidas cobradas dentro dos prazos estabelecidos.
A decisão da Corte estabelece, num prazo mais longo, medidas para reduzir a violência policial. Entre elas, determina que, em caso de morte, tortura ou violência sexual decorrentes de intervenção policial em que agentes do Estado sejam suspeitos, a investigação seja feita por um órgão independente.
Também solicita a exclusão das expressões "oposição" e "resistência" dos registros de homicídios decorrentes de intervenção policial, eliminando a figura dos "autos de resistência" em todos os documentos oficiais, e cobra a publicação de relatório anual oficial com os dados relativos às mortes ocorridas durante operações da polícia em todos os Estados do país.
BBC BRASIL.com

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